Encontro

Nota Artística

por François Manceaux

François Manceaux

A estética da imagem ligada à temporalidade

Em ENCONTRO, três tratamentos da imagem ilustram uma identidade e uma temporalidade diferentes.

O passado de Luísa, com base em imagens documentais, é mostrado por uma imagem ligeiramente granulada, num formato reduzido e com contrastes saturados no limite do sépia.
Essas imagens foram registadas em pequenas cassetes, uma dezena de anos antes das filmagens do filme em 4K. Essas imagens são identificadas como documentos de arquivo, através de um conjunto de inserções, ilustrando gravações em curso.

O presente, em dois tempos: é ilustrado pelos décors de Lisboa (Portugal) e de Gante (Bélgica). As imagens da Bélgica são banhadas por uma luz carregada de tensão, juntando-se-lhes um cinzento profundo com um céu de chumbo e chuvoso.
As imagens de Lisboa são fortes com o seu céu azul cristalino, passando a tonalidades frias e podendo ir de uma passagem de nuvens até um azul-esverdeado mais dominante.

O Tempo do Sonho ligado à espiritualidade e ao imaginário, trazido pelo personagem de Alain na sua fantasmagoria, num décor fantástico que identificamos com Cabo Verde. Essa temporalidade é ilustrada, voluntariamente, em décors de tons quentes. Podemos sentir a proximidade africana na imagem contrastada que nos traz a secura de um sol vulcânico acompanhado de um vento por vezes presente e alternando vagas de nuvens com as brumas do calor da manhã e da noite. Estas brumas são, durante o dia, entrecortadas por um céu intenso. Essas cores profundas, intencionalmente saturadas, reenviam-nos para o clima rude das ilhas, cercadas por um oceano poderoso que lança as suas vagas sobre os recifes vulcânicos sob uma luz inclemente que é refletida nas suas manchas cintilantes na areia negra. Numa ilha vizinha, surge, por oposição, uma vegetação luxuriante nos seus vales e montanhas. Um paradoxo próprio deste arquipélago a que chamamos Cabo Verde, onde cada uma das ilhas faz valer as suas diferenças.

Um quadro emocional em movimento

Decidi utilizar os enquadramentos em formato panorâmico, de maneira a otimizar os décors naturais e a trabalhar sobre a profundidade de campo com os atores. O movimento acompanha o sentimento de errância que atravessa o filme e traduz essa deambulação, cruzada de personagens em busca de amor e alimentadas pela saudade, levando-nos às profundezas da alma portuguesa. Assim, na maior parte das sequências, o enquadramento é levado por travellings à altura dos olhos, com a câmara a acompanhar os atores e deixando transparecer a sua intimidade.

Também desejei envolver os personagens nos décors de cidade em Lisboa e em Cabo Verde, utilizando longas focais que favorecem a profundidade de campo, para ilustrar uma visão gráfica dos lugares, com os personagens em primeiro plano perto da câmara.

Prestei uma atenção particular ao filmar os portos de todas as cidades, atravessados pelo personagem principal. Mostrar que essa viagem atravessada pela errância é uma necessidade, uma forma de obsessão para esta personagem, em busca de um futuro para se encontrar a ela mesma. Essas imagens recorrentes, mostram que ENCONTRO é, também, uma forma de Road Movie emocional, mas elas podem, igualmente, lembrar aos espectadores um compromisso Europeu, fazendo valer essa herança Norte-Sul, passando por Gante e Lisboa e daí até ao Mindelo, em Cabo Verde, locais ligados pela sua frente Atlântica.

A música no filme

A dramaturgia do filme com os seus décors está ligada à diversidade geográfica e cultural que atravessa o filme. O acompanhamento musical vai aproveitar essa originalidade.
O filme vai encontrar nas suas sequências-chave, onde a tradição está sempre presente, o espírito do Fado em Lisboa, bem como o da Morna em Cabo Verde. Os cantos e os tambores de ritmo Crioulo têm uma influência africana e brasileira.

No que diz respeito à expressão musical, a intenção foi acentuar de maneira identificável e repetitiva, as etapas psicológicas marcantes da narração. Por exemplo, as sequências onde Alain e Maria estão num clima terno e amoroso são sublinhadas por uma interpretação musical de cariz nostálgico e intimista, acentuadas por uma guitarra acústica de tonalidade ibérica. Inversamente, as sequências marcadas pela obsessão, a ansiedade e o suspense, que estão ligados ao desconhecido e alternam com o caracter emocional de Alain, são ilustradas por uma música mais sinfónica, inspirada por compositores como Richard Wagner, Brahms, ou Chostakovitch, mas, também se reconhece a influência musical de filmes de Alfred Hitchcock. Outras cores sonoras distintas surgem para relembrar as passagens entre o espaço do real em Lisboa para o imaginário em Cabo Verde e para a transcendência espiritual.

Sobre o Realizador

François Manceaux nasceu em Paris.

Aos 16 anos começou a filmar algumas ficções e documentários, rodados com amigos tão cinéfilos quanto ele. A partir dos 18 anos inicia o seu percurso como estagiário e assistente de realização em mais de uma dezena de documentários. Trabalha sobretudo com José Giovanni, Michel Drach e Pierre Barouh.

Depois, após a frequentar a Escola Louis Lumière, dedica-se à imagem enquanto assistente de câmara de uma dezena de diretores de fotografia de todo o mundo, onde se incluem nomes como o francês Pierre L´ homme, o argentino Ricardo Aronovich, o brasileiro Lauro Escorel, ou ainda o italiano Ennio Guarnieri.

François Manceaux trabalhou com realizadores vindos de universos muito diferentes : Robert Bresson “Quatre nuits d´un rêveur”, Marguerite Duras “Jaune le soleil”, Patrice Chéreau “La chair de l´orchidée”, François Leterrier “Good bye Emmanuelle”, Claudine Guillemin “La femme intégrale”, Franck Cassenti “La chanson de Roland”, Edouard Molinaro “Au bon beurre”, Randal Kleiser  “Summer lovers”, Etienne Perier “La part du feu”, Nicolas Gessner “Quelqu´un derriére la porte”, Carlos Diegues “Quilombo”…

Depois de ter realizado o documentário de ficção “We Cannes” em 1987, François Manceaux inicia-se definitivamente na realização de documentários. Realiza a triologia “Era uma vez 19 actores”: três documentários de 52´ sobre o trabalho do ator em redor de Patrice Chéreau e Jacques Doillon. Anos depois, esses filmes ganharam ainda mais valor, já que muitos desses atores do Théâtre des Amandiers ganharam grande notoriedade.

François Manceaux produziu e realizou depois vinte documentários para televisão (ARTE France), incluindo a série “Uma lição particular de música” e a minissérie “Viver a representação com…”. De seguida, e para a televisão pública e Canal Plus, os documentários direcionados para os assuntos socioculturais, bem como reportagens multimedia para difusão na internet.

Alguns dos seus documentários foram selecionados pelo FIPADOC (International Documentary Film Festival) e, “onde estão os nossos familiares?” obteve o Prémio Media da Fundação da França e o Prémio do Público no Festival do Documentário Europeu (Reims).
A partir de 2010 realiza dois documentários em Portugal : “Pietro – artista cinemático” que obtém o Prémio de Melhor Filme dos Criadores Artísticos, e também “Portugal, os caminhos da incerteza” (52´), difundido pela SIC Noticias e selecionado para o Festival de Cinema Francês em Portugal, Festival Resistência e Festival do Filme Histórico (Pessac, França).
Em 2017 a ópera filmada por François Manceaux, “A voz humana” de Jean Cocteau e François Poulenc, foi editada em DVD. Também realizou “Medusa”, videoarte com Marie Hugo. Inicia depois a escrita e a produção da sua longa-metragem de ficção “Encontro”, com Isabel Otero e Johan Heldenbergh, terminada em 2023.